As "cidades do futuro" pretendem ser verdes, sustentáveis, inteligentes e low cost. Isto já existe. Chama-se "Campo". Frederico Lucas

Monday, March 03, 2008

Valores: a cidadania adormecida


No próximo fim-de-semana, cem jovens com menos de 45 anos vão debater, a bordo de um barco que subirá o Douro, sete grandes desígnios para Portugal. O Expresso começa hoje a revelar os documentos, que depois serão entregues a Cavaco Silva

No séc. XIX, no apogeu do Império Britânico, era habitual dizer-se que o Parlamento inglês poderia fazer tudo menos transformar um homem numa mulher. Entre nós, só a partir de 1969 a mulher pôde transpor qualquer fronteira sem autorização escrita do marido.

Na década de oitenta, o então primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro tinha o estigma de ser divorciado. O que mudou, primeiro lenta e depois cada vez mais rapidamente, para que o que antes era errado e impossível seja hoje apenas normal?

O sentido e percepção do tempo, a evolução técnica, a globalização, a fragmentação do colectivo, a diluição da autoridade e o relativismo axiológico, são algumas das respostas imediatas que, contudo, não preenchem a ausência de sentido ou diminuem o vazio que vai alastrando pela sociedade, transformando de forma cada vez mais profunda os nossos dias.

Confrontamo-nos hoje com percepções, discursos e racionalidades distintas entre si, as quais criam e promovem no mesmo tempo e espaço várias representações, imagens, linguagens, percepções e valores alegadamente não hierarquizáveis. A imposição externa (religiosa, estadual ou colectiva) de valores coerentes e congruentes fragmentou-se, e o colectivo deu lugar ao primado, cada vez mais subjectivo e autónomo, do eu individual todo-poderoso.

Se esses resultados foram positivos, como se demonstra nos exemplos indicados, tiveram também consequências nefastas. Compartilhamos hoje um espaço que aparentemente vive dominado pelo império do lucro económico imediato e desigual. Esta é, também, a primeira era em que a beleza, a verdade e a justiça não existem como entidades aglutinadoras e verticais, mas apenas como algo parcelar, aprendido, formulado e hierarquizado por sistemas próprios de referências e valores, tão distintos e autónomos entre si como cada uma das liberdades do indivíduo.

Mas se cada cidadão é, só por isso, livre de agir e de “conformar o seu mundo”, essa mesma liberdade de acção pressupõe que seja responsável pelos seus actos, perante si próprio, perante os outros e perante a comunidade onde se integra e na qual exerce a sua liberdade, à qual, por tudo isso pertence inelutavelmente. Somos, por isso, nós com e para os outros.

Nesta nova ordem socioeconómica multicêntrica, construída num quadro de conflitualidade próprio das democracias modernas, o desafio está em encontrar um postulado intercultural, com pluralismo ideológico e religioso que possa sedimentar uma co-existência construtiva eticamente fundada.

Um debate sedimentado e pluridisciplinar é a única alternativa para a reflexão que deve preceder o discurso e a acção.

Um dos caminhos será a procura do valor como espaço simbólico fundado num discurso convincente e por isso aglutinador.

Outro, a reformulação e neocontextualização das virtudes cívicas da justiça, temperança, tolerância, harmonia e equidade.

Uma terceira via seria simplesmente substituir esses conceitos pela pura eficácia ou racionalidade económica.

Contudo, a história ensinou-nos, depois de Nuremberga, que a pura racionalidade utilitária pressupõe e exige uma delimitação baseada em critérios fundamentais, inalienáveis, que não se esgotem no imediato e útil, mas que salvaguardando o indivíduo potenciem também a coesão social.

Se tudo já foi dito, tudo foi feito e nada mais resta do que a “perpétua agonia da indecisão individual”, valerá a pena a discussão, o simples gesto de começar o caminho descruzando os braços e levantando os olhos para lá de cada espelho. Talvez sim se, além dos grandes princípios, mas com base neles, procurarmos as simples boas práticas e concretizarmos os pequenos nadas que, juntos entre si, podem transformar muitos quotidianos. Afinal, o mesmo tijolo que hoje eleva os muros que nos vão separando, pode ser removido para abrir algumas janelas, construir pontes e talvez trazer algum equilíbrio à nossa triste e bela cidade, suavemente adormecida.

in Expresso, Paulo Duarte Teixeira, Juiz de Direito e Coordenador do Grupo Valores do ‘Novo Portugal - Opções de uma geração’

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