As "cidades do futuro" pretendem ser verdes, sustentáveis, inteligentes e low cost. Isto já existe. Chama-se "Campo". Frederico Lucas

Friday, May 13, 2011

Virgílio, pastor, fala do País


Tem 37 anos, a quarta classe, e gosta de pastorear o seu rebanho em liberdade. A "ruína" de Portugal não lhe é indiferente. Estas são algumas das suas convicções

"Eu gosto disto. É como lhe digo, isto é diferente. A gente não anda ao mandado de ninguém. Agarrei-me a isto, agarrei-me ao gado.

A trabalhar para um patrão ganha-se muito melhor dinheiro. E com outras condições. Pega-se às oito da manhã e larga-se às cinco. Está a gente livre. Tem-se sábados, dias santos, feriados. Tem-se subsídio de férias e de Natal. Eu, na época da ordenha tenho de pegar às seis da manhã, quando não é às cinco e meia. E às vezes à meia-noite ainda lá ando. São dois dias num. Então trabalhar para um patrão não é maior sossego? Anda-se ao mandado deles, não é? Mas é um sossego.

Eu não fui assim criado. Fui habituado assim e gosto de fazer o que faço. Não é pelo que se ganha.

O ar puro é diferente. É outra liberdade. Às vezes falam-me que é mais bonito morar numa cidade como a Covilhã ou Lisboa. Eu, se fosse morar para a Covilhã morria logo. Com o ar e o cheiro dos carros e o barulho. Eu sou novo, mas fui criado à moda antiga. O meu pai tem 86 anos. Trabalhou sempre na agricultura para criar os filhos. Éramos nove irmãos. Sou o mais novo de todos. Somos da Bouça. Foi assim, o gado foi passando, passando, e já cá estou há 20 anos. Queriam vender o gado e eu disse que ficava com ele. Antigamente tinham muitos filhos e criavam-nos todos. Agora é um ou dois e já é muito.

É por isso que isto agora está como está. Isto está na ruína porquê? Nem numa enxada sabem pegar. Não sabem lavrar um bocadinho de terra nem cuidar de um animal. E onde é que se produz a maior parte dos alimentos? É do gado e da terra é que vem tudo. A mim dizem-me "tu cheiras a cabra". É verdade! Mas de onde é que vem tudo? É dos computadores ou da internet? A malta de agora julga que vem tudo do ar. Se acabarem os rebanhos e ninguém cuidar da terra como é que vai ser?

Aqui no Morgadinho era só cabradas. Agora ando cá eu... Se acabar tudo, quero ver como vão comer. Por isso é que está tudo a ficar caro como o lume. Portugal não produz nada. Tem de vir dos estrangeiros. Quem quer o produto tem de o pagar bem caro. Quem é que quer cuidar dos rebanhos hoje em dia?

Gosta mais de nós quem vem de fora. Os turistas gostam de falar connosco e de ver o gado. Os da terra ainda fazem pouco. "Cheiras a cabra". Mas o queijo, os iogurtes e a manteiga, o leite e as carnes não nascem do céu. Tem de haver quem tome conta do gado para haver produção. E isto dá trabalho a muita gente. Doutores e fábricas e tudo.

A juventude agora, acho bem, não sou nada contra isso, só quer é estudar. Mas antigamente, os velhos e os garotos passavam o dia a trabalhar. Eu com cinco, seis anos vinha para a quinta trabalhar depois da escola. Se não fosse... carrega o macho [levanta o cajado como se fosse bater em alguém].
A juventude de agora não sabe trabalhar na terra porque não lhes ensinam. Se toda a gente tivesse um quintalzinho e aprendessem era bom. Se soubessem produzir, isto se calhar não estava assim. Isto está mau para toda a gente.

Agora aqui, nas Cortes e na Bouça há cinco pastores. Antigamente havia uns 100. Em acabando eu, isto acaba por completo. Nem para os turistas tirarem uma fotografia aqui na Serra.

Antigamente, nas Cortes e na Bouça tudo tinha gado e tudo se governava com o gado. Agora está a acabar. Porque também põem certas condições que a gente não se consegue aguentar. Verdade seja dita. Querem que a gente ponha ordenha mecânica. A gente ordenha tudo à mão, é o antigo. Então, no pavilhão onde eu tenho o gado, nem luz sequer tenho... Só um gerador para dar uma luzita para a gente ver qualquer coisa. Para botar uma ordenha mecânica é preciso um gerador muito valente ou electricidade normal, pronto. E onde é que a gente tem condições para isso? Para isso mais vale acabar com o gado. Muita gente acabou com o gado pelas leis que põem. No inverno temos de ter o gado dois meses num lado, dois meses no outro. Tínhamos que ter um pavilhão de ordenha em cada quinta, não? Mas se nem um carro lá chega... Eu daquela quinta além para baixo tenho que acarretar o leite às costas até à estrada. E é agora, que a estrada é nova. Antes levava um cântaro de 35 litros às costas e outro na mão até ao povo. Ali da Malhada do Salgueiro e da Malhada da Fonte, levava o cântaro às costas por aquela vereda. Por isso é que estou velho. Fiz isso durante 10 anos. Tínhamos que ter a ordenha feita às 10 da manhã para levar o leite a tempo de ir para a fábrica. Se não, ia à vida...

Muita gente acabou com o gado. Os velhotes não estão para isso. E os novos também não querem. E eu, qualquer dia, acabo também. Eu não tenho frigorífico. Ligo-o aonde? Até lhe sei responder... Aos tomates do chibo?

Quem põe estas leis julga que aqui é como no Alentejo em que conseguem ali ter duas ou três mil ovelhas dentro de uma quinta. Mas isto aqui não é o Alentejo, é a serra. É pedras e frio. Quem põe essas leis devia andar aqui uma semana a tomar conta do gado, no inverno. Às vezes a gente até chora, com o temporal. A gente chega a casa a pingar e a tremer com frio. Eu uso safões, que é uma coisa de pelo de cabra para pôr nas pernas. Gosto mais do pêlo de cabra porque escorre a água, enquanto que a lã da ovelha ensopa e fica pesada. Uso botas de borracha e fato de oleado. E uma capa destas que às vezes, em chegando ao curral, fica oito dias a enxugar.

Continuei com isto e gosto. Não é pelo produto. Há anos em que não se tira nada. Os cabritos é uma coisa muito sensível e que leva muito caminho... Morrem muito. O borrego é muito mais resistente. Se nascer bom, ao fim de um mês está um borrego do caraças, enquanto que o cabrito é preciso dois e três meses e às vezes encanita-se. Tanto que o leite da ovelha é muito mais forte e muito mais caro. O queijo de ovelha custa três contos o quilo e o da cabra custa um conto e tal. Vá que isso agora melhorou um bocadinho. Antes pagavam 25 cêntimos por litro. Era uma pechincha. Agora é que subiu um bocadinho. Tenho poucas ovelhas, só 15. Eu gosto mais da cabra. A ovelha só quer erva. Anda um bocado, mas se não enche a barriga de erva anda o dia inteiro a berrar, mé-mé. A cabra em andando um bocado no lameiro já fica contente, quer é roer mato. Ela própria sai do lameiro. Enquanto que a ovelha pode ficar todo o dia a comer erva. E aqui há pouca. Os nossos terrenos são fracos. Agora há, porque é a primavera. Mas qualquer dia, para o fim de Setembro, já não há nadinha, seca tudo."

in Visão, Paulo Pena

1 comment:

Cristina said...

Gostei imenso de ler este texto. Ilustra muito bem uma realidade que tem de ser preservada!