Não se assustam com o fecho de escolas, centros de saúde e fábricas. Os casais que trocaram o apartamento na cidade por uma casa no campo têm outros trunfos: são qualificados, empreendedores e não dispensam as novas tecnologias. Lamentam a falta de transportes mas agradecem as estradas sem trânsito. Fomos saber o que os levou a remar contra a maré.
A mudança de António Manuel Venda de Lisboa para Montemor-o-Novo foi obra de Cupido. Foi atrás da Catarina, que já tinha trocado a capital pelo interior do Alentejo. Ana Berliner e o marido, António Monteiro, conheceram-se em Figueira de Castelo Rodrigo, na Guarda, e também acabaram por ficar a viver por lá, longe de Lisboa, onde nasceram. Trocaram as voltas ao êxodo rural e garantem que compensa. Interior é, para eles, sinónimo de qualidade de vida.
in Público
O tronco da azinheira deitado ao chão no terreno ao lado de casa é uma das portas de ligação de António Venda com o resto do mundo. Só ali, em cima do tronco, consegue apanhar rede de telemóvel no sítio onde mora. É de lá que o jornalista e escritor de 42 anos combina entrevistas e planeia negócios. A Internet também ajuda. António dirige uma revista em Lisboa, mas fá-lo online, a cem quilómetros de distância do escritório, a uma hora de caminho. Vai lá pelo menos uma vez por semana, sem pressas, sem horários.
É assim desde que deixou a cidade rumo ao Alentejo, em 2003. Três anos antes, Catarina tinha-se mudado para Montemor, onde abriu uma livraria. A aposta na cidade tinha tudo para dar certo. "Está a uma hora de tudo: da praia, de Lisboa e de Espanha. Além disso, tem uma actividade cultural engraçada", explica Catarina, de 36 anos, que antes morava em Carcavelos e trabalhava em publicidade. Agora trabalha no Centro Coreográfico de Rui Horta, o conhecido coreógrafo que também escolheu a cidade para se instalar.
Mais barato e mais seguro
Por causa da livraria e porque tem raízes familiares em Montemor, o processo de integração foi fácil para Catarina. Com António, não foi bem assim. "Ainda hoje, vamos na rua e ela cumprimenta 20 pessoas, enquanto eu cumprimento uma", diz o jornalista.
Mas os filhos do casal estão perfeitamente integrados. Os três nasceram no hospital de Évora, a meia hora de distância. "É como viver em Cascais e ir ter o filho a Lisboa", brinca Catarina. Os dois mais velhos vão este ano para a escola em Montemor. "O miúdo vai para o futebol e a rapariga escolheu equitação, em vez do ballet", diz o pai. Não faltam distracções para as crianças no concelho. "Pagamos só três euros por mês pela ginástica", conta Catarina.
Ambos concordam que é mais barato viver em Montemor, sobretudo para criar os filhos. E há mais segurança do que nas grandes cidades. "O mais velho vai agora para o primeiro ano. Dentro de pouco tempo já poderá ir sozinho a pé para a biblioteca, ou para a Oficina da Criança, onde tem várias actividades gratuitas", diz a mãe. As despesas do dia-a-dia é que nem por isso são menores. "Temos supermercados como em Lisboa e as mercearias praticam preços altos. Já tivemos uma horta mas está em stand by".
Na vida do casal não há bem o "antes e depois" de Lisboa. Há mais o "antes e depois" dos filhos. "Antes, íamos várias vezes jantar a Lisboa, ao cinema, ao teatro. Como vamos contra o trânsito, é rápido. Agora, vamos menos. Mas se estivéssemos em Lisboa também já não saíamos tanto", admite Catarina.
Mesmo assim, não dispensam algumas fugidas à capital ao fim-de-semana, para mostrar a cidade às crianças. "Acabamos por ver Lisboa de outra maneira. Vivemos a cidade como turistas".
Admitem regressar um dia à capital? António diz que não. Catarina não tem nada contra, mas prefere o sossego do monte alentejano. "O que me aflige mais em Lisboa", explica, "é sair de casa sem respirar ar puro. Saímos de casa para a garagem, vamos no carro com o ar condicionado, entramos no parque de estacionamento e subimos para o escritório. Nem dá para perceber se está frio ou calor".
Mas admite ter saudades dos restaurantes japoneses ou indianos, que ainda não chegaram a Montemor. Onde também não se pode encomendar uma pizza. "Não há take away, ou quando há tem de ser bem pago".
Seduzida pela paisagem
A morar a 380 quilómetros de Lisboa, Ana Berliner sabe que nem todos estão dispostos a pagar o preço da interioridade. "Tem que haver uma grande motivação", diz. Ainda assim, conhece pelo menos seis pessoas que se lançaram numa aventura semelhante à sua.Na aldeia histórica de Castelo Rodrigo (uma das 12 do país), onde mora com António e as duas filhas, não há mais do que dois cafés, uma loja de artesanato, uma igreja e um palácio em ruínas, o Palácio Cristóvão de Moura. "Mas é tudo tão bonito", diz, apontando para a paisagem imensa e verde que vê da janela da sala.
A sede do concelho, Figueira de Castelo Rodrigo, fica a três minutos de carro. "Lá temos todos os serviços básicos: centro de saúde, escolas, bancos, biblioteca, centros desportivos, supermercados", conta. Este ano fecharam três escolas no concelho, mas isso ainda não a preocupa. "Figueira está ao ritmo do país, nem mais nem menos".
"Aqui tenho qualidade de vida", garante a bióloga. Ana e António Monteiro, também biólogo, chegaram em 1995 à região do Baixo Côa, onde estagiaram. "Foi essa a nossa sorte. Éramos estudantes, não tínhamos emprego em Lisboa, só o encontrámos aqui", conta Ana. Na altura, estava a ser criado o Parque Natural do Douro Internacional. António acabou por integrar a equipa do parque como biólogo do Instituto de Conservação da Natureza e Biodiversidade, actividade que mantém.
Foram ficando, ajudaram a fundar a Associação Transumância e Natureza, com trabalho de relevo na criação e alargamento do primeiro parque natural privado do país, a Reserva da Faia Brava, em Figueira. Ambos têm familiares distantes no distrito da Guarda, mas não foi isso que pesou na decisão. "Foi a zona que nos seduziu, e o trabalho", garante Ana. Quando decidiram comprar casa, Castelo Rodrigo estava na lista dos locais preferidos. Porquê? Pela paisagem, pela tranquilidade e pela história que ainda se respira dentro dos muros da aldeia, requalificada com o apoio da União Europeia, no final da década de 90.
"Soubemos que estava uma casa à venda e viemos". Deitaram mãos à obra e reconstruíram a casa e a zona envolvente. Apostaram depois no turismo rural, através da Casa da Cisterna. Nunca pensaram voltar para Lisboa, aonde só vão para resolver problemas. "Ia fazer o quê? Aqui tenho tudo o que preciso". E como matam saudades da família que ficou em Lisboa? "Os telemóveis e a Internet fazem maravilhas", brinca. A videoconferência encurta quilómetros.
Ter carro próprio é fundamental para viver no interior. A zona é servida com "bons acessos", mas "faltam transportes públicos", lamenta a bióloga de 37 anos. Mas agradece as estradas sem o trânsito de Lisboa. Em Castelo Rodrigo moram cerca de 50 pessoas e uma dezena de crianças, que se juntam ao pé do pelourinho assim que espreita o sol. Vão com as bicicletas e sentam-se no chão à conversa, que interrompem para cumprimentar quem passa.
Ninguem morre de fome
"Ao contrário do que acontece em Lisboa, aqui quem tem poucos recursos não passa fome. Há terrenos para cultivar e os vizinhos ajudam", explica. A verdade é que "o custo de vida no interior é muito mais baixo", diz. Em parte, porque "os serviços municipais dão muito apoio". Ao contrário do que é hábito nas grandes cidades, "aqui damos conta do que a câmara faz". A alimentação é mais barata, mas o mesmo não se passa com a habitação - a diferença em relação a Lisboa "não é proporcional", lamenta. Mas há uma vantagem: "Aqui não há tentações".
O concelho de Figueira de Castelo Rodrigo perdeu mais de 800 pessoas nos últimos dez anos - hoje tem perto de 6500 habitantes. Para estancar esta perda, a autarquia decidiu investir, à semelhança do que já fizeram outros municípios espalhados pelo país.
Desde o ano passado, o município apoiou 35 casais com montantes de 750 a mil euros por casal. Às empresas, a autarquia dá mil euros por cada posto de trabalho criado no concelho e 360 euros por cada nova sociedade que ali se instale, entre outros apoios. Em contrapartida, a empresa tem de manter actividade durante pelo menos quatro anos.Se houvesse o mesmo tipo de apoio em Trancoso, a 50 quilómetros de Figueira de Castelo Rodrigo, talvez o negócio de Artur Tavares tivesse dado certo. Ou talvez não. O fotógrafo mudou de Lisboa para Trancoso há quatro anos com a mulher e os quatro gémeos, mas foi "à experiência" porque "não podia correr riscos". Manteve a casa na capital e a loja em Linda-a-Velha. Em Trancoso, abriu duas lojas com serviços de fotografia e clube de vídeo. "Pensei que no interior, onde há menos oferta cultural, o clube de vídeo fosse uma boa aposta. Mas afinal os jovens olhavam para a capa dos filmes e diziam: "Já saquei da Internet"." Artur reconhece que tinha um "preconceito" em relação às condições de vida no interior, que são melhores do que pensava, o que ditou o insucesso do negócio.
"Tinha uma loja na Amadora, onde facturava por dia o que em Trancoso não fazia num mês", conta. O problema é que "às seis da tarde não há ninguém na rua" e o maior fluxo de pessoas só chega à sexta-feira, para o mercado semanal. "Cheguei em Dezembro, e em Fevereiro era raro não passar a semana na loja de Lisboa e regressar a Trancoso ao fim-de-semana", explica.
Ainda assim, admite que "lá tinha mais qualidade de vida". Os filhos estavam inseridos na escola, a família integrou-se. "Em termos profissionais é que não funcionou", lamenta. Teve de voltar para Lisboa, embora mantenha a casa em Trancoso.
São situações como esta que Frederico Lucas, um dos mentores do projecto Novos Povoadores, quer evitar. "Estabelecemos o prazo de um ano para ponderação da mudança, com visitas obrigatórias ao terreno", explica. A iniciativa, que já devia ter arrancado no ano passado, foi adiada para a Primavera de 2011, altura em que as famílias interessadas poderão começar a fixar-se em dez municípios do interior norte.
As três autarquias que inicialmente mostraram interesse no projecto - Évora, Marvão e Idanha-a-Nova - recuaram, alegando falta de verbas. Por cada conjunto de vinte famílias, cada município teria de pagar 73 mil euros aos promotores, que seriam responsáveis pela selecção das famílias, pelo apoio à deslocalização e pela formação em empreendedorismo.
Agora, o projecto vai ganhar novo fôlego com o apoio da Fundação EDP, inserido nas medidas de repovoamento previstas nos estudos de impacto ambiental das barragens que a eléctrica vai construir no Sabor, Tua e Fridão.
Alentejo para sonhadores
Em lista de espera, estão cerca de 350 agregados. Os destinos mais desejados pelas famílias inscritas são Évora, Castelo Branco, Beja, Portalegre, Bragança e Vila Real. "O Alentejo é mais procurado pelos sonhadores. As pessoas que procuram o interior norte têm sobretudo motivações familiares".
No grupo dos "sonhadores" está Ana Pedrosa e o marido, David Salema. Ambos são licenciados em Engenharia do Ambiente. É daí que vem a ligação ao campo e à natureza, já que nenhum tem raízes no interior e sempre viveram em Lisboa. Ainda não sabem para onde querem ir, só sabem que é para o Alentejo. "Não me agrada a vida da cidade. Estou farta do trânsito, de não ter tempo para nada. Quero ter qualidade de vida", desabafa Ana Pedrosa.
O casal, ambos com 35 anos, tem dois filhos pequenos. "Queria criá-los num espaço mais pequeno e saudável". Mesmo com as escolas a fechar em tantos locais do interior? "Vou escolher um sítio onde haja escolas e centros de saúde perto", ressalva. Daqui por dois anos, Ana quer estar fora da capital, de preferência com o apoio da iniciativa Novos Povoadores.
João Faria, que nasceu em Lisboa há 46 anos, também sonha com o Alentejo, mas já definiu o destino - Évora. É lá que quer "começar de novo" com a esposa e, quem sabe, um segundo filho. O destino surgiu com a ideia de abrir um negócio na área da restauração, turismo ou cultura. Mas o projecto está em stand by. Actualmente, João Faria está a desenvolver um projecto na área do marketing digital, que pode desenvolver em Évora. "Desde que tenha uma boa ligação de Internet e um escritório, hoje consegue-se estar perto dos clientes", sublinha.Factores como a segurança, as acessibilidades (a cidade fica a 1h30 de Lisboa, por auto-estrada) e o custo de vida mais baixo foram determinantes na escolha. As ligações familiares e os amigos na cidade alentejana também prometem facilitar o processo de mudança. E se mesmo assim correr mal? "Nunca sabemos o que nos espera. Mas num regresso ao litoral só se for para fora da Grande Lisboa".
No projecto Novos Povoadores, João viu "uma forma de ver o desejo de mudança facilitado". Mas agora prefere acreditar mais em apoios ao nível do empreendedorismo, diferentes dos que estavam pensados inicialmente pelos promotores. "Penso que os mentores do projecto podem e devem investir noutras formas de continuar a ajuda a quem quer mudar, uma vez que não tem sido fácil para eles levar avante o que tinham por base no seu projecto original", afirma. "Quanto a nós, com apoio ou não, a ideia de mudar mantém-se", garante.
João tem uma opinião formada sobre o ordenamento do território nacional. "O país já começa a ter as mesmas possibilidades em cidades e vilas do interior", em comparação com as do litoral, tanto em infra-estruturas como em acessibilidades, refere. Mas isso não chega. "É preciso criar condições a quem queira investir profissionalmente nesses locais", diz. Como? "Apoiando os empreendedores com menos burocracia, fomentando o co-working, continuando a apostar na evolução das tecnologias de informação e criando sinergias entre profissionais com elos comuns para se poderem apoiar mutuamente".
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