As "cidades do futuro" pretendem ser verdes, sustentáveis, inteligentes e low cost. Isto já existe. Chama-se "Campo". Frederico Lucas

Saturday, August 28, 2010

"Já tivemos maternidade. Agora, nem uma farmácia"

Vivem longe de quase tudo, e o pouco que têm vai desaparecendo - urgências, atendimento 24 horas, médicos na consulta, enfermeiro a tempo inteiro. E são cada vez maiores as dificuldades destas populações no acesso à saúde. São as juntas de freguesia que tentam minorar os prejuízos, mas o sucesso é relativo. E só ficam os velhos...

Idalina Amiguinho, 63 anos, desfila um rol de queixas, que é preciso interromper para perceber do que fala. Mora em Santa Eulália, uma aldeia do interior do distrito de Portalegre. Mulher com "vários problemas de saúde e, até, da doença dos nervos", não se conforma com o fecho da Farmácia Cruz, há dois anos. "Estava afónica, por acaso até tinha consulta marcada, a médica, a Dra. Alexandra, está cá há seis meses - esteve cá uma espanhola, a Rebeca, engravidou e abalou -, passou os medicamentos para tomar às 16.00. Tive de estar à espera da minha filha para ir à farmácia de Arronches, sempre fica um bocadinho mais perto que Elvas [a 15 quilómetros, menos três]. O meu marido tem um carro velhinho comprado em segunda mão, mas é muito doente, tem colesterol... precisamos de muitos medicamentos, e são caros."
A Farmácia Cruz mudou-se para Elvas, deixando de ser o ponto de atendi-mento/triagem da aldeia. Beneficiou da portaria n.º 1430, de 2 de Novembro de 2007, que permite a deslocalização das farmácias dentro do concelho, sem que a transferência esteja sujeita a uma avaliação,por peritos, às necessidades da população.
"O problema dos medicamentos é importante, mas uma farmácia é mais do que isso. A maior parte das vezes, um técnico de farmácia é um psicólogo, um conselheiro. As pessoas sentem-se bem em lá ir. Enquanto esperam para ser atendidas, vão conversando. O nosso maior problema é a solidão: 60% da população tem mais de 65 anos e passa o ano inteiro só", lamenta Cláudio Carapuça, o presidente da Junta de Freguesia de Santa Eulália. Muitos dos seus eleitores não têm a 4.ª classe para poderem tirar a carta de condução, e muito menos dinheiro para comprar o carro.
"Ainda há dias tive de chamar um táxi para ir a Elvas; aqui não há bombeiros para pedir uma ambulância. Tem de ser, sou solteiro", desabafa José Francisco, 78 anos, agricultor, "trabalhava nas hortas". São pelo menos 45 euros, dinheiro que depois é reembolsado pelo Estado. "A minha reforma é de pouco mais de 300 euros... ", explica. E sempre que o médico de família lhe receita medicamentos, vai directo à casa do farmacêutico, que mantém a residência em Santa Eulália. "Entrego à mulher, e ele traz os remédios no dia seguinte." "Olhe, isso é que não faço", protesta Idalina Amiguinho. "Ele pintou-nos, e eu não vou lá."
"Diziam que a farmácia só ia fechar uns dias, mas fechou e nunca mais abriu. Agora, faz negócio em Elvas e aqui. Eu também levo às receitas à mulher dele." E, assim, José Charruadas, 78 anos, compensa a falta que lhe faz a farmácia. Charruadas também é solteiro. "Fui criado além, nos montes. Não havia mulheres", brinca.
Desenrolam o novelo das críticas no Largo de José da Silva Picão, "autor glorioso do livro Através dos Campos", à entrada da vila, junto ao cruzamento em que os semáforos são controlados por energia solar. Um banco à sombra serve de poiso a quatro reformados. Idalina passou e parou.
"Não se pode estar em casa com este calor", justificam. É a farmácia que fechou, a antiga estação de correios a cair (passaram para um "cubículo" da Junta), o médico que só vai à aldeia duas vezes por semana. "E se estiver doente ou de férias, ninguém o substitui", protestam. "Já nem o pão aqui é feito!"
"Andava aí um bocado manhoso. Tive de ir de táxi para Elvas, porque nunca sabemos se nos despachamos a tempo de apanhar a camioneta. Fizeram-me exames, meteram-me soro e não encontraram nada, mas o que é certo é que andava mal", conta Miguel Carpinteiro, 65 anos, ex-cabouqueiro. Os dois filhos deixaram a aldeia mal se tornaram adultos. "Não há trabalho...", justifica.
E quem não vai a casa do técnico de farmácia, tem a junta de freguesia como alternativa, entre as 07.00 e as 13.00, horário contínuo. Na volta, é uma carrinha que distribui os remédios pelos doentes, mas Cláudio Carapuça, o presidente, faz coro com os que protestam contra o farmacêutico, e não se abastece na Farmácia Cruz, em Elvas. "Não tenho de levar a mal, é um negócio, mas como presidente da junta, não posso concordar", justifica o jovem autarca. Não fala sentado à secretária, mas na igreja, e como servente de pedreiro; com Adriano Carlos, 50 anos, o secretário, e Paulo Carpinteiro, 44 anos, o tesoureiro, colocam um altar para a imagem de Santa Eulália.
Foi o "avó da Fatinha" que instalou a farmácia na freguesia, "há muitos anos. A população sempre se lembra da sua existência, mas é pequena a lista de potenciais clientes: 1100 eleitores nas últimas eleições. Cláudio Carapuça acredita que o Censos 2011 indicará mais habitantes do que há dez anos. A Câmara Municipal de Évora disponibiliza lotes de terreno para construção, a 5000 euros, o que tem levado pessoas para as zonas mais despovoadas. Muitos têm os empregos na cidade.
Já Juliana Sousa, 17 anos, tem poucas hipóteses de sair da aldeia. Não tem meios para se deslocar à cidade; tem família para ajudar. Sentada no degrau da porta da casa, com a avó Maria do Carmo Bolaixo, 85 anos, lamenta: "Se tivesse um emprego efectivo, ficava aqui; gosto disto. Mas está tudo a sair, cada vez há menos coisas para fazer. Estivemos mais de três meses sem médica. E se a minha avó piorava, era à farmácia que ia medir a tensão quando não havia enfermeiro." É um dos poucos rostos jovens da aldeia. Completou o 9.º ano em Vila Boim - na freguesia deixou de haver o 7.º ano -, e a única coisa que conseguiu foi seis meses de trabalho, através do programa Ocupação Municipal Tempos Livres, a ganhar 250 euros por mês. Não tirou a roupa do serviço, e percebe-se que esteve a pintar. "Faço tudo o que for preciso: tirar erva, caiar, tudo..."
Também a população de Colos protesta por a Farmácia Colense, Odemira (Beja), ter mudado para Vila Nova de Mil Fontes. E a história que contam já não é nova. Um estabelecimento secular, tão antigo que deu o nome à rua - Rua da Farmácia -, servia as freguesias em redor. Era um apoio; o problema foi ser vendida a alguém que não "sente aquele amor" pela terra.
"Era a farmácia que a gente aqui queria. Como era dantes. Tenho 64 anos, e já existia quando eu era nova. A minha mãe tem 95 anos e diz que toda a vida houve aqui farmácia. Era do senhor Militão Camacho, sabia muito, fazia medicamentos e tudo. Ele pôs--se muito velhote, e ficou um sobrinho a trabalhar. Depois abalou, e foi vendida a uma senhora que não era daqui. Há tanto tempo que se ouvia dizer que ela abalava, mas custava-me a acreditar... Agora, vai mesmo acabar", conta Joana Correia.
Chegou a trabalhar na casa da proprietária da farmácia, e também por isso lhe dá mais pena. A unidade ainda abre de manhã, mas é só até o processo de transferência estar concluído. "Há aqui muita gente e a escola veio dar vida a isto. Há menos crianças, mas ainda há muitos jovens. Temos centro de saúde (extensão), a Cruz Vermelha, os Correios, a Caixa Geral de Depósitos, a GNR... Temos tudo, é uma pena", lamenta Joana. E têm uma parafarmácia, do proprietário da farmácia de Odeceixe, que se disponibiliza a trazer os medicamentos, e sem pagamento de porte. E um número de telefone para as emergências. "Ah tem? olhe, não sabia. Mas fica à saída da vila; é longe, e não é a mesma coisa", conclui a mulher.
Em São Barnabé, Almodôvar, distrito de Beja, não se protesta contra o fecho da farmácia, a diminuição das horas de atendimento do médico ou o encerramento das urgências. "Nunca tivemos nada disso. Sentimos a falta... mas o que é que quer? O pior foi quando fechou a escola; foi uma escuridão". Lamentações de Lisete Maria, 73 anos. Sentada do lado de fora da taberna local, acompanha Maria Catarina, 78 anos, mais nos silêncios do que nas palavras. Fazem tempo para "comer qualquer coisinha", o jantar.
São poucos os habitantes, na maioria velhos. E só no Verão, com a vinda dos emigrantes, há algum movimento nas ruas. Um médico desloca-se uma vez por semana à Casa do Povo - "é a Dra. Maria, veio da Holanda, que aqui não há doutores, mas quando for embora, lá voltamos a estar à espera". A visita do enfermeiro também é espaçada. Pede-se aos vizinhos para "aviar as receitas", ou então entregam-se na junta de freguesia. E nem os incentivos à natalidade, entre 750 euros (primeiro filho) e 1750 (terceiro e seguintes), fazem inverter a tendência de envelhecimento; há uma criança...
"Sou dos mais novos, mas quem é que pode aqui viver? Não há emprego. E até nos tiraram a aguardente de medronho. Sou mecânico, mas acabo por fazer um pouco de tudo: monto bombas, arranjo motores de tirar água, o que aparecer", explica José Reis, 54 anos. É, também, dos poucos que tem carro. "Pedem-me para que lhes leve as receitas quando vou à cidade; faço-lhes os recados. Tem de ser", acrescenta.
São Barnabé fica a 29 quilómetros de Almodôvar, a mais distante das oito freguesias do concelho. E são 29 quilómetros às curvas pela serra do Caldeirão, estrada estreita e a descer até à vila. As urgências (Serviço de Atendimento Complementar) em Almodôvar encerraram, o que quer dizer que são mais 24 quilómetros até à unidade de Castro Verde. É, seguramente, mais de uma hora de caminho, a prova de que a distância ao quilómetro não é igual para todos.
"A nossa preocupação é a falta de pessoal, não chegamos para as necessidades da população. Se há uma urgência, temos de ir para Castro Verde, sem esquecer o regresso. Desde que as urgências fecharam, que se torna complicado gerir os funcionários. Além disso, somos a reserva do INEM, mas não foi fornecida viatura, e eles têm de levar uma ambulância nossa", conta José Marques, 56 anos, 2.º comandante, dirigente dos Bombeiros Voluntários de Almodôvar.
Em tempo de férias, aumenta a população local. E as preocupações. E, além dos motoristas e técnicos para dar assistência em cuidados de saúde, há o combate aos incêndios. A corporação tem 24 funcionários (condutores, socorristas, administrativos, atendimento), além dos voluntários. "Claro que não posso concordar que fechem as urgências. Os acidentes e as doenças não escolhem as horas, e uma boa parte dos habitantes não tem meios próprios para se deslocarem", protesta.
"E os transportes são maus. O meu pai tem 89 anos e tem de ir à consulta a Beja. Como é que ele vai de camioneta para Beja?! Antigamente, ainda se deslocava de carroça e burro, mas agora nem isso. As camionetas são poucas e é preciso apanhar várias. Estou aposentada e gostava de dar mais assistência, mas moro em Portimão e não conduzo. Nem sei como é que poderia chegar aqui de transportes públicos. Felizmente, arranjou-se uma equipa para lhes levar a comidinha. Mas as pessoas aqui vivem muito isoladas", diz Maria do Carmo Martins, 59 anos, ex-professora do ensino básico. E sublinha: "As pessoas têm de vir a Almodôvar para ver como as coisas ainda funcionam."
A falta de recursos, em especial no acesso à saúde, levaram Luís Monteiro, 42 anos, a voltar a fazer contas à vida. Pequeno empresário na área dos mármores, pensava deixar definitivamente a Bélgica, onde viveu 20 anos, para se fixar em Poiares, a sua terra. Mas esta, em vez de progredir, só "tem regredido". "A Farmácia Portugal fechou há dois anos. Temos de ir a Peso da Régua ou a Vila Real comprar os medicamentos. O hospital é o de Peso da Régua; uma estrada estreita com curvas e inclinada. No Inverno, e com gelo, é um perigo. Agora querem fechar a escola. Tenho um filho de seis anos e uma filha de 14, e não vejo aqui futuro para eles. Qualquer dia é o centro de saúde que fecha. Que futuro lhes vou dar? Não venho para cá e vou vender o que aqui tenho", argumenta.
A Farmácia Portugal mudou-se há ano e meio para Vila Real, e é uma funcionária da junta de freguesia que recebe as receitas. "É um serviço que prestamos aos utentes, sobretudo às pessoas de idade. Os medicamentos chegam no dia seguinte, e se for urgente, ligo e vêm no próprio dia", conta Conceição Rodrigues, 42 anos, que muitas vezes recebe os pedidos da população na sua própria casa; afinal, são os seus vizinhos. É o antigo presidente da Junta, agora técnico da farmácia, que traz os remédios.
As juntas de freguesia tentam colmatar as falhas no acesso aos cuidados de saúde. E lamentam que as decisões sejam tomadas a nível central e sem consulta aos dirigentes locais. E sentem-se de mãos atadas. "Íamos à farmácia a Poiares, a 10 quilómetros, e agora temos que nos deslocar a Peso da Régua, que fica a 31 quilómetros. Já me prometeram que não fechavam o centro de saúde (extensão)... É muito complicado. Em Agosto, não temos médico na maior parte do tempo", diz José Maria Leonor, 58 anos, aposentado da GNR, presidente da Junta de Freguesia de Galafura. E sublinha: "São as leis do Governo, não são as câmaras nem as juntas que decidem. Eles é que lá sabem o que andam a fazer, mas está mal, a saúde é muito importante!"

in DN, Céu Neves e Orlando Almeida

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